Ler obras juvenis
ou best-sellers é apenas o começo de uma longa e produtiva convivência
com os livros. Essa é a lição que anima os jovens a se aventurarem na
boa literatura atual e nos clássicos
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Bruno Meier
Para a catarinense Taize Odelli, de 21 anos, Vergonha,
de Salman Rushdie, é uma fantasia feita para chocar e evidenciar até
onde a pessoa, uma família ou um país pode chegar na desonra. Crime e Castigo é
uma leitura atraente pela complexidade e pela construção do perfil
psicológico dos personagens criados pelo russo Fiodor Dostoievski. Ma
ela desdenha de Madame Bocary, de Gustave Flaubert. "As cinquentas páginas iniciais, até o primeirocaso da protagonista, são monótonas", opina. Desde 2009, Taize critica dois livros por semana em seu blog, Rizzenhas.
Tem parceria com quatro editoras, enviam a ela exemplares de seus
lançamentos, com vista a atrair o público jovem por meio da resenhista
novinha. Mesmo sem incentivo familiar, Taize sempre foi boa leitora. Mas
o hábito virou vício quando pegou emprestado o terceiro volume da série
Harry Potter. "Desde então, não fiquei uma semana sem ler." Sua
média é de 10 livros por mês - e o trajeto trajeto de 45 minutos enrtre
São Leopoldo, onde mora, e Porto Alegre, onde estagia, favorece o
ritimo da leitura. "A literatura ajuda a ter sensao crítico, diz.
Deixe-se
o sexo para uma discussão posterior. No que diz respeito à leitura, uma
graciosa menina carioca é uma das inúmeras evidencias do que se lê na
capa de VEJA. Em janeiro, a universitária Iris Figueiredo, de 18 anos,
anunciou em seu blog a intenção de organizar encontros para discutir
clássicos da literatura. A ideia era reunir jovens que estavam cansados
de ler as séries de ficção que lideram as vendas nas livrarias e passar a
ler obras de grandes autores. Trinta respostas chegaram rapidamente. No
mês seguinte, o evento notável de Iris começou: vinte adolescentes
procuraram uma sombra junto ao Museu de Arte Contemporânea de Niterói -
cada um com seu exemplar de Orgulho e Preconceito, da inglesa Jane
Austen, debaixo do braço e sentaram-se para conversar. Durante duas
horas, leram os trechos de sua preferência, analisaram a influência da
autora sobre escritores contemporâneos (descobriram, por exemplo, que
certas frases do romance foram emuladas em diálogos da série O Diário de
Bridget Jones, de Helen Fielding) e destrincharam os dilemas pelos
quais passaram a vivaz Elizabeth Bennett e o arrogante Mr. Darcy, os
protagonistas do romance. Iris se entusiasma ao falar do sucesso de suas
reuniões que já abordaram títulos como O Retrato de Dorian Gray, de
Oscar Wilde, 1984, de George Orwell, e Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca.
Desde pequena, ela é boa leitora. Mas foi só ao descobrir a série Harry
Potter que se apaixonou pela leitura e a transformou em parte central
de seu dia a dia. Quando a saga do bruxinho virou mania entre as
crianças e os adolescentes, uma década atrás, vários críticos
apressaram-se em decretar que esse seria um fenômeno de resultados
nulos. Com o eminente crítico americano Harold Bloom à frente,
argumentavam que Harry Porter só formaria mais leitores de Harry Potter
os livros da inglesa J.K. Rowling seriam incapazes de conduzir a outras
leituras e propiciar a evolução desses iniciantes. Jovens como Iris
desmentem essa tese de forma cabal. Ler é prazer. E, uma vez que se
prova desse deleite, ele é mais e mais desejado. Basta um pequeno
empurrãozinho como o que a universitária ofereceu por meio do convite em
seu blog - para que o leitor potencial deslanche e, guiado por sua
curiosidade, se aventure pelos caminhos infinitos que, em 3000 anos de
criação literária, incontáveis autores foram abrindo para seus pares.
Várias
vezes, no decorrer do último século, previu-se a morte dos livros e do
hábito de ler. O avanço do cinema, da televisão, dos videogames, da
internet, tudo isso iria tornar a leitura obsoleta. No Brasil da virada
do século XX para o XXI o vaticínio até parecia razoável: o sistema de
ensino em franco declínio e sua tradição de fracasso na missão de formar
leitores, o pouco apreço dado à instrução como valor social fundamental
e até dados muito práticos, como a falta e a pobreza de bibliotecas
públicas e o alto preço dos exemplares impressos aqui, conspiravam
(conspiram, ainda) para que o contingente de brasileiros dados aos
livros minguasse de maneira irremediável. Contra todas as expectativas,
porém, vem surgindo uma nova e robusta geração de leitores no país
movida, sim, por sucessos globais como as séries Harry Porter,
Crepúsculo e Percy Jackson. Em 2005, a rede de livrarias Saraiva vendeu
277000 exemplares de títulos voltados para o público infantojuvenil. Em
2010, foram 1,7 milhão - um estarrecedor aumento de 514%. O crescimento
deve-se em parte à ampliação da rede, com a compra da Siciliano, em
2008. Mas nenhum outro segmento se desenvolveu tanto quanto o juvenil.
Também
para os cidadãos mais maduros abriram-se largas portas de entrada à
leitura. A autoajuda (e os romances com fortes tintas de autoajuda, como
A Cabana) é uma delas; os volumes que às vezes caem nas graças do
público, como A Menina que Roubava Livros, ou os autores que tem o dom
de fisgar com suas histórias, como o romântico Nicholas Sparks, são
outra. E os títulos dedicados a recuperar a história do Brasil, como
1808, 1822 ou Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, são
uma terceira, e muito acolhedora, dessas portas. É mais fácil tornar a
leitura um hábito, claro, quando ela se inicia na infância. Mas qualquer
idade é boa, é favorável, para adquirir esse gosto. Basta sentir aquele
comichão do prazer, e da curiosidade - e então fazer um esforço, bem
pequeno, para não se acomodar a uma zona de conforto, mas seguir adiante
e evoluir na leitura.
Um
livro puxa outro, não há dúvida. Por isso, nas páginas desta
reportagem. VEJA oferece sugestões de caminhos pelos quais enveredar a
partir de certos pontos iniciais que as listas de mais vendidos
comprovam ser eficazes: as séries Harry Potter e Crepúsculo, os
best-sellers A Cabana e A Menina que Roubava Livros e os romances de
Nicholas Sparks. Os aventureiros de espírito podem zarpar de um desses
pontos e chegar a destinos fulgurantes como Moby Dick., Grande Sertão:
Veredas ou Em Busca do Tempo Perdido.
Veja-se
o exemplo da universitária catarinense Taize Odelli, de 21 anos. Taize,
como a carioca Iris Figueiredo, caiu de amores pela leitura por meio de
Harry Potter; anos atrás. Hoje, discute com desenvoltura sobre a obra
do clássico russo Fiodor Dostoievski ou a do contemporâneo anglo-indiano
Salman Rushdie. Taize percorreu esse trajeto levada por sua
curiosidade, e agora cuida de despertá-la em outros jovens como ela. A
cada mês, recebe cerca de dez lançamentos de quatro editoras nacionais e
os resenha em seu blog. Para as editoras, ela é uma ponte com um
público que resiste aos canais tradicionais de divulgação, como jornais e
revistas. Para a garotada que acompanha seu blog (ou o de Iris, que,
funcionando nos mesmos moldes, conta cerca de 16000 acessos mensais),
ela é um caminho alternativo: os livros, na escola, costumam ser motivo
de tédio; redescobri-los como fonte de deleite, passo a passo com
pessoas da mesma idade, é um papel que a internet sim, uma daquelas
invenções que iriam assassinar a leitura, segundo os pessimistas vem
desempenhando de forma espontânea e com surpreendente eficácia. "Não
gosto de Machado de Assis até hoje porque lembro que fui obrigado a
lê-lo no colégio quando ainda não estava preparado", diz o administrador
paulista Eduardo Ribeiro. Machado de Assis é frequentemente um dos
primeiros autores a ser indicados como leitura obrigatória em sala de
aula e tem se tornado um pesadelo para qualquer docente que deseja
transformar a leitura em fruição e não em aversão. "Exigir a leitura de
Memórias Póstumas de Brás Cubas e marcar uma prova semanas depois
definitivamente não é o caminho", diz a pedagoga Elizabeth Baldi,
fundadora da Escola Projeto, em Porto Alegre.
Os
leitores adolescentes impulsionaram os maiores sucessos das livrarias
na última década. Nunca se produziu, traduziu e fez circular tanto livro
para eles como agora e na lista de mais vendidos de VEJA, na categoria
ficção, eles figuram nas melhores posições. A série Harry Potter com
vendas mundiais que ultrapassam os 400 milhões de exemplares (no Brasil,
chegaram a 3 milhões), detonou essa onda, é evidente. Em 2008, um novo
sucesso surgiu no país: a saga Crepúsculo, com 120 milhões de exemplares
comercializados (5,5 milhões no Brasil). E aí o fenômeno começou a
ganhar novos contornos: através de comunidades e perfis nas redes
sociais, os adolescentes passavam horas discutindo o destino da menina
Isabella Swan e do vampiro Edward Cullen - e, nessa fase, se um amigo
demonstra um interesse, é rapidamente copiado pelos outros. "Não é mais
possível lançar um livro para esse público sem pensar numa estratégia de
atração por meio das redes sociais", diz Jorge Oakim, editor da
Intrínseca. Ele é um caso exemplar de ajuste às mudanças ocorridas no
mercado editorial. Desde a inauguração de sua editora, em 2003, viu seu
negócio mudar radicalmente: no início, 15% dos lançamentos eram
destinados ao público jovem - Atualmente; esse número saltou para 80% -,
e esse mesmo percentual representa o faturamento atual da editora com
os jovens.
No
meio do curso na faculdade, garotas como a carioca Iris Figueiredo e a
catarinense Taize Odelli não estão ainda pensando em emprego. Mas não é
exagero especular que, com seus blogs de resenhas, já estão se
profissionalizando. Mesmo quando os benefícios dos livros não parecem
tão imediatos. porém, eles são concretos e até quantificáveis. Um estudo
divulgado no mês passado pela Universidade Oxford demonstra uma conexão
inequívoca entre leitura e sucesso profissional. Conduzida pelo
americano Mark Taylor, do departamento de sociologia, a pesquisa ouviu
17 200 pessoas nascidas em 1970. Comparou as atividades
extracurriculares desenvolvidas por elas quando tinham 16 anos com a sua
posição hierárquica aos 33. A leitura se revelou o único fator que, de
forma consistente, esteve associado à ascensão profissional. Para as
mulheres. a chance de ter um cargo mais elevado cresce de 25% para 39%
quando lêem; para os homens, de 48% para 58%. Nenhuma outra atividade -
cinema, esportes, visitas a museus e galerias - teve impacto
significativo. O progresso pode estar associado ao desenvolvimento do
vocabulário e ao domínio de conceitos abstratos propiciados pelo hábito
da leitura. E vale enfatizar: a pesquisa centrou-se na leitura
extracurricular. Ou seja, o livro lido por prazer - e não porque foi
exigido em uma disciplina escolar - é o que realmente conta.
Para
quem não tem o hábito da leitura (e, entre os brasileiros, muitos não o
tem), o projeto de se tornar um leitor sofisticado pode parecer
inatingível e tedioso, e cansativo. (Inútil não o é mesmo, como está
demonstrado no parágrafo acima.) Mas imagine se, dez anos atrás, alguém
pedisse a você que tomasse decisões com a carga de responsabilidade das
que toma hoje, ou que manejasse os programas de computador que hoje lhe
são habituais: impossível, assustador. Com a leitura, dá-se esse mesmo
processo de aprendizado, cumulativo e, por que não, suave. Se atualmente
a sua leitura preferida são os romances adocicados de Nicholas Sparks e
outros autores do gênero, um livro como Guerra e Paz, de Leon Tolstoi,
talvez pareça impenetrável (e chato). Ora, a saída simples e prazerosa é
percorrer um circuito menos acidentado. Passe antes por Tess, de Thomas
Hardy, ou até por um conto breve como Bola de Sebo, de Guy de
Maupassant. Um livro não apenas puxa outro, como prepara para o
seguinte. Em um ano, ou dois, ou três, quando abrir de novo as páginas
de Guerra e Paz, é provável que a leitura já lhe pareça agradável e
instigante e não mais um martírio.
Ler
é indispensável para aqueles que querem se expressar bem: mostra as
diversas possibilidades da língua, aumenta o vocabulário e enriquece o
conhecimento. "E a forma mais eficiente de saber e de humanizar-se,
colocando-se no papel do outro. Deixa a pessoa mais próxima da
civilização e mais distante da barbárie" diz o escritor Miguel Sanches
Neto, exemplo de cidadão que, mesmo num ambiente de pobreza material e
cultural, buscou o melhor da literatura. Todas essas benesses, porém, só
são adquiridas quando o leitor passa a buscar uma leitura mais seletiva
e procura o melhor que os autores clássicos e célebres já produziram ao
longo do tempo. "Existem livros que tratam a pessoa como consumidora e
acompanhante passiva da história. Esses dispensam a atividade do
leitor", diz Luís Augusto Fischer, professor de literatura brasileira na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de Filosofia Mínima -
Ler; Escrever; Ensinar, Aprender. E aí se chega a uma recomendação
importante: nos primeiros meses, não importa muito o que a pessoa lê,
desde que ela adquira a habilidade essencial de ler apenas por prazer.
Tom Wolfe, um dos mais celebrados jornalistas e escritores americanos,
leu apenas e tão somente sobre beisebol até os 16 anos de idade - mas
leu.
A
leitura consolidou-se como uma experiência individual e solitária. E
lendo em silêncio, para nós mesmos, que melhor entendemos e apreciamos
uma obra - qualquer obra. seja o árduo Paraíso Perdido, de John Milton,
ou o saboroso Alta Fidelidade, de Nick Hornby. Relembrando a juventude
em suas Confissões, Santo Agostinho expressa sua surpresa ao ver como,
em torno do ano 384, Santo Ambrósio, bispo de Milão, realizava suas
leituras: "Quando ele lia, seus olhos perscrutavam a página e seu
coração buscava o sentido, mas sua voz ficava em silêncio e sua língua,
quieta". Na Antiguidade, lia-se em voz alta, até para ajudar no
entendimento das frases. pois ainda não existiam sinais de pontuação.
Não admira, portanto, que Agostinho tenha registrado com tanta ênfase a
quietude concentrada de seu mestre. O mergulho quase solipsista na
página, a absorção na voz íntima do livro, que hoje reconhecemos na
pessoa que lê em uma biblioteca universitária, em uma praça ou em um
banco de ônibus, era ainda excepcional. Em Uma História da Leitura,
Alberto Manguel informa que a leitura silenciosa só se tornaria usual no
Ocidente a partir do século X. Em um ensaio sobre o culto aos livros, o
escritor argentino Jorge Luis Borges - um dos maiores leitores do
século XX - descobre na atitude descrita por Santo Agostinho a
prefiguração de uma nova postura cultural em relação ao livro: "Aquele
homem passava diretamente do signo da escrita à intuição, omitindo o
signo sonoro; a estranha arte que se iniciava, a arte de ler em voz
baixa, conduziria a consequências maravilhosas. Conduziria, passados
muitos anos, ao conceito de livro como fim, não como instrumento de um
fim.
Ainda assim, subsistem formas de
congraçamento social em torno do livro. Ler para o outro pode ser uma
forma de generosidade ou uma celebração do talento. No século XIX, o
romancista ingles Charles Dickens atraía multidões para as sessões
públicas de leitura de seus romances. Em âmbito bem mais modesto, no
Brasil, José de Alencar lembra, em Como e Porque Sou Romancista, que era
chamado por sua mãe e outras mulheres da família para ler em voz alta
folhetins açucarados, que elas ouviam, às lágrimas, enquanto costuravam e
faziam tarefas domésticas. Festivais de literatura contemporâneos
continuam a trazer escritores consagrados para sessões de leitura de
suas obras. De novo, pode ser também a tecnologia a varinha de condão
que reúne os homens em torno dos livros e ideias: o Kindle, leitor
digital comercializado pela megalivraria global Amazon, possui
ferramentas que fazem com que o usuário tenha a sensação de que não está
sozinho. Ao sublinhar um trecho de um capítulo que atraiu
particularmente sua atenção, por exemplo, o usuário é informado do
número de leitores que marcaram a mesma passagem. Outros recursos
permitem o gesto amigável de emprestar um livro digital a outra pessoa,
ou ouvir o texto em voz alta. O que hoje entendemos como literatura
precede a escrita: a Ilíada e a Odisseia, os dois grandes épicos gregos
compostos em torno de VII a.C. e atribuídos a Homero, surgiram como
poemas a ser memorizados e recitados, e não lidos. Seja qual for o meio -
a voz, o papel, a tela do leitor eletrônico -, a leitura existe para
isso: para ligar os homens pelo fio comum de sua experiência.
Cena verídica observada em um
dos mais caros shopping centers paulistanos: uma mãe passeia (1878),
pelos corredores com seus dois filhos, de uns 5 e 8 anos, quando o mais
velho exclama, entusiasmado: "Olha, uma livraria! Vamos lá, mamãe?" Ao
que ela repreende, seguindo na direção contrária: "Livraria? E o que é
que você quer fazer lá?". Ora, mamãe, por favor. Da próxima vez, deixe
que seu filho a puxe pela mão e se perca entre as estantes. E aproveite
para fazer o mesmo. Você vai se surpreender com o que encontrará lá e
consigo mesma.
Fonte: http://clipping.cservice.com.br/cliente/visualizarmateria.aspx?materiaId=12893758&canalId=16647&clienteId=0P1raIDrFiE%3D&end
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